Na rua onde eu moro, ainda acontecem coisas assim; por serem raras hoje em dia, acho que devem ser valorizadas.
Por mistérios que nem vale a pena tentar desvendar, as caixas de correio localizam-se no pátio comum a todos os moradores do condomínio e sem acesso à minha porta que se localiza na rua contígua. Não adiantou de muito introduzir uma chapa cartas na minha porta; a minha correspondência vai invariavelmente para “o monte”, e já é motivo de chacota com o vizinhos quando me vêem sair em direcção ao pátio com um saco: “Ah! Hoje vais à tua caixa”. Como não se localiza, como era suposto, no percurso de acesso à minha casa, esqueço-me sistematicamente de verificar se alguém me escreveu.
Ontem, eram 9h da manhã quando ouvi a campainha da porta. –“Só pode ser alguém para chatear” - pensei enquanto sentia que o dia ainda não tinha começado para mim, habituada que estou a não falar com ninguém enquanto espero os efeitos da cafeína matinal.
O segundo toque, mais insistente, obrigou-me a reagir – “se for para pedinchice, leva um corrida que tão cedo não volta aqui!”. E foi com maus modos que rosnei pelo intercomunicador
- Quem é? - Correio. E antes que eu tivesse tempo para dizer qualquer coisa, adiantou:
- Tem aqui uma carta registada; e olhe que parece ser importante, deve ser o IRS. A senhora está a descansar?
(reparar bem para a delicadeza da expressão; não disse “está deitada” ou “ainda está a dormir”, disse “está a descansar”)
- Sim, mas desço já… - Não é preciso, eu deixo aqui na sua porta. - Então e eu não tenho que assinar? - Eu assino, deixe-se estar. Como já vi que está em casa, eu assino, deixe-se ficar a descansar.
Não o conheço, nem sei se é gordo ou magro, alto ou baixo, não tenho como lhe agradecer o gesto. Só espero que ele ainda me tenha ouvido dizer: